Gilberto Alvarez, diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber
Nestes dias sombrios em que a sociedade brasileira vive seguidos e crescentes retrocessos, alguns brados de indignação e resistência ganham maior visibilidade, especialmente quando logram participar da escala multiplicativa das redes sociais, cuja divulgação às vezes permite o uso, bastante apropriado, da metáfora “viralização”.
Pois viralizou nas redes sociais o discurso feito por Michele Alves, ex-aluna do Cursinho da Poli e formanda que se valeu da condição de oradora dos bolsistas da turma de Direito para resgatar o enorme conjunto de dificuldades superado por ela na sua condição.
Ela falou em nome de muitos; falou para muitos e deixou claro a quem se referia quando indignadamente respondeu com seu diploma àqueles que se referiam a bolsa de estudos como “esmola que o governo dá”.
A cena marcante e a exibição da coragem dos indignados, como diria Paulo Freire, convida a uma reflexão sobre o financiamento do ensino superior brasileiro com base nas bolsas de permanência e nas rubricas orçamentárias do PROUNI, Fies etc.
Inicialmente é correto reconhecer aquilo que alguns economistas críticos, do espectro argumentativo democrático, denominaram de imperfeição republicana.
Ou seja, é necessário reconhecer que dentre as muitas inconsistências que um país tão desigual como o Brasil permanentemente enfrenta figura, com destaque, a recorrente “necessidade” de alocar recursos públicos para instituições privadas.
Igualmente é importante reconhecer que o financiamento direto às instituições privadas pode proporcionar expressiva distorção como, por exemplo, capitalizar instituições de ensino privado que acumulam ganhos na Bolsa, no Brasil e no exterior.
Apesar disso, porém, é antidemocrático e fortemente elitista considerar que essas imperfeições não sejam evitáveis e que distorções não possam ser corrigidas em nome, inclusive, dos que se beneficiam das estruturas de financiamento que temos.
Se é fato que a cobertura de vagas no ensino superior que temos é insuficiente, é fato também que aguardar a ampliação dessa cobertura pode significar para a parte mais empobrecida da juventude esperar por um trem que nunca vai passar na estação de suas vidas.
Por isso, a despeito das imperfeições, a efetivação de créditos mediados por editais do PROUNI, das regras do Fies, das bolsas de permanência, diz respeito à conquista de espaço por jovens que, de outra maneira, não teriam acesso ao ensino superior.
Se o financiamento das instituições contempladas com tais regras pouco ou nada interferiu na qualificação educacional de suas estruturas, a responsabilidade pela inadequação entre forma e conteúdo é do Ministério da Educação, que carrega histórica incapacidade de exigir que instituições privadas honrem a obrigação de educar e não se contentem em vender um produto com certificação.
Pois foi com esse financiamento imperfeito e insuficiente que muitos jovens que carregam em suas existências o peso da escravidão em nosso DNA social, ou seja, os filhos de analfabetos, os filhos de porteiros e empregadas domésticas, conseguiram algo impensável para as gerações precedentes, a formatura na faculdade, o diploma de ensino superior, a certificação profissional.
Se foi possível para uma jovem de brilhante oratória afirmar, com pungente indignação, “eu venci a despeito do desprezo de colegas e professores” é porque o objeto em questão, a bolsa, tem significado político diferenciado para quem recebe e para quem “não precisa”.
Como afirmava Stuart Hall, trata-se também da configuração de identidades, por afirmação e por negação.
O desprezo e a zombaria às cotas, às ações afirmativas de modo geral; aos expedientes de financiamento subsidiados; às bolsas e descontos, dizem respeito a associar o usufruto do direito à condição social de quem o solicita. Em outras palavras, é uma zombaria que ecoa a Casa Grande farfalhando, como sempre, que “pessoas inferiores” são “fardos econômicos”.
Um país racista, cioso da manutenção de suas desigualdades, às vezes recebe um potente “calado!, agora eu vou falar!”.
Foi o que fez a formanda Michele Alves, que se graduou na PUC de São Paulo com a mediação da bolsa de estudos do Prouni.
Ela mostrou que o financiamento e o crédito são essenciais para a democracia e que suas imperfeições não devem ser evocadas para suprimir direitos que não foram dados em sinal de misericórdia, mas sim conquistados em sinal de resistência.
É do interesse dos próprios solicitantes de bolsas e contemplados em editais como os do PROUNI que essas regras se aperfeiçoem e digam respeito, fundamentalmente, ao direito de estudar e não à possibilidade de enriquecer empresários da educação.
E é do interesse também dessa aguerrida juventude, quase sempre não branca, proclamar em alto e bom som, como fez a formanda cujo discurso “viralizou”, que a zombaria e a comparação entre bolsas e esmolas são tentativas de estabelecer fronteiras, delimitar espaços e perguntar entre desaforos: “o que você está fazendo aqui?”.
Cada bolsista pode responder que está, mesmo que por dentro de políticas carecidas de aperfeiçoamento e vigilância cidadã, não pedindo licença, não recebendo migalhas, mas retomando o que sempre pertenceu a todos (as), que é o direito à educação. Direito esse com o qual seus pais jamais sonharam, justamente porque bolsas e políticas afirmativas não faziam parte de um passado que deveria envergonhar a todos, antes de ser enaltecido.
Em portogente.com.br , 14/03/2018